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Donald, I love you

Donald, I love you

Versão ampliada de artigo publicado na Folha de S.Paulo em 16 de março de 2020.

A política externa brasileira causa perplexidade. Como pode um grande país, pergunta-se no mundo inteiro, comportar-se de forma tão inconsequente, subalterna e até ridícula? O Brasil, um dos gigantes do planeta, apresenta-se agora como um anão ignorante e ressentido.

Estranho, em especial, é o alinhamento aos Estados Unidos. Pelas suas dimensões territoriais, demográficas e econômicas, o Brasil não cabe no quintal de ninguém – frase que escolhi, et pour cause, como título de livro publicado há pouco. E, no entanto, como o pessoal se esforça! O esforço inédito para enquadrar-nos no quintal dos EUA é ao mesmo tempo chocante e intrigante. Este artigo é uma tentativa, talvez ilusória, talvez imaginativa demais, de captar a lógica da atual política externa, em especial da relação com o grande irmão do Norte. Pode bem ser, leitor, que não exista lógica nenhuma. Mas quero crer que exista, sim, algum “método nessa loucura”, como diria Hamlet.

Antecipo, em duas frases, a minha hipótese explicativa: o que temos, na verdade, não é uma relação Brasil/EUA, mas outra coisa mais limitada e totalmente diferente: uma relação Bolsonaro/Trump, isto é, a tentativa, da parte do presidente brasileiro, de criar uma relação muito particular, de natureza inconfessável, com o presidente americano. Para tal, Bolsonaro faz, por assim dizer, cortesia com chapéu alheio: cede posições e interesses brasileiros, econômicos e políticos, para obter vantagens para si, isto é, para fortalecer-se nos embates internos correntes e futuros.

Não quero descartar as explicações habituais. Há, de certo, um componente de admiração beócia pelos Estados Unidos e, em particular, por Donald Trump. O presidente brasileiro e seu chanceler sofrem provavelmente de um certo problema cognitivo. Difícil não admitir que as esquisitices da relação com os EUA possam resultar, em parte, de simples falta de noção sobre como funcionam as relações internacionais.

Mesmo assim, leitor, as explicações habituais não convencem inteiramente. Afinal, não é preciso ser grande estudioso ou experiente negociador internacional para entender que todo país deve defender seus interesses e que ofertas unilaterais não levam a nada. Desde o começo, o governo brasileiro tem feito uma série de concessões comerciais e políticas sem contrapartidas ou com contrapartidas modestas. Não preciso enumerá-las, pois são de conhecimento geral. Os resultados práticos para o Brasil vêm sendo irrisórios ou enganosos.

As distinções mais óbvias costumam ser negligenciadas. Uma coisa é o Brasil, com seus interesses permanentes, outra é o governo brasileiro do momento, com seu horizonte curto. O governo Bolsonaro é fraco, politicamente contestado, inclusive por setores expressivos do establishment doméstico. Não tem base parlamentar estável nem capacidade ou vontade real de construí-la. A ninguém escapa, portanto, que Bolsonaro poderá correr, em algum momento talvez já tenha começado a correr – risco de impeachment ou, no mínimo, de perder as condições de governar. O risco de impeachment é exacerbado por uma imprudência na escolha do vice. A melhor proteção contra o impeachment, como se sabe, é um vice que assusta – José Alencar, não Michel Temer.

Problemas cognitivos ou não, Bolsonaro sabe disso tudo, suponho. E já vem preparando o seu Plano B, com três pontos, a ser acionado em caso de ameaças graves a seu projeto de poder, tais como perda de governabilidade, impeachment ou inviabilidade de reeleição. O primeiro ponto é a militarização do governo e a cooptação das forças armadas. Posições-chave são ocupadas por oficiais (até mesmo, emblematicamente, a Casa Civil) e tratamento especial vem sendo oferecido às corporações militares, inclusive na alocação de recursos orçamentários e, com expressivo custo político, na reforma da previdência.

Segundo ponto: o fortalecimento das milícias, no Rio de Janeiro e em outros lugares, alimentadas e encorajadas pela relação com o presidente da República e seus filhos. Disso faz parte a facilitação da compra e do porte de armas. Pode até ser que estejamos na antessala de um golpe de tipo boliviano: forças paramilitares de extrema direita, armadas até os dentes, preparadas para, no momento certo, partir para a violência, com o beneplácito e, no limite, a ajuda das forças oficiais. Modelo boliviano, combinado com autogolpe no estilo peruano, de Fujimori.

Last but not least, a relação muito particular com Donald Trump, ponto de apoio potencialmente importante em caso de agravamento do quadro interno e risco de descontinuidade do bolsonarismo. Vista por esse prisma, não se torna mais inteligível, por exemplo, a intenção de Bolsonaro, aparentemente absurda, de indicar aquele seu filho para o posto de embaixador em Washington? E mais inteligível, também, certas afirmações de Bolsonaro em seu recente encontro com Trump na Flórida? Na ocasião, o presidente brasileiro soltou, ao discursar, uma frase que causou alguma estranheza: “Eu tenho certeza que num futuro próximo é (sic) muito bom contar com um bom relacionamento de direita”.

A reeleição de Trump em 2020 seria então peça essencial do Plano B de Bolsonaro. Se essas conjecturas têm algum fundamento, o que estamos presenciando é o desaparecimento das fronteiras entre a política interna e a externa, convertendo-se esta última em mero instrumento da primeira.

Releio o que escrevi. Parece lógico e bem estruturado. Lembrei-me, porém, de Emil Cioran, grande filósofo romeno do século 20, que desconfiava da lógica e das tentativas de sistematização. O que é lógico e ordenado, indagava ele, não é coerente demais para ser verdadeiro?

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